Conversa de Mármore

Desde que o Escriba iniciou a sua peregrinação pelas veredas do talento viseense, ainda não se criaram versos ou palavras cobertas de poeira dourada que homenageassem a arte da escultura. Embora os golpes falhados da relativização, a harmonia permanece no seu trono inviolável, acariciando as formas de uma simples divisa: o belo é belo, o feio é feio. A Grécia Antiga, abraçada pelo azul cristalino do mediterrâneo, e a Roma Imperial, grata ao leite maternal da loba Capitolina, tinham espelhos distintos dos nossos. Hoje, usamos vidro, na época, usavam mármore. Porquê mármore? Porque dele através dele que se reflectiam. A estátua, justa para com o detalhe e a perfeição, deve à Antiguidade Clássica a admiração dos olhos temporais. Será que o termo “Idade de Ouro” é um acaso? Certamente que não. Deixemos este tema para quem verdadeiramente o conhece como filho. No Número 11 do Escriba entrevistamos Anabela Pascoal, escultora e professora.

1 – Olá, Anabela. Agradeço que tenha aceite o nosso convite. Diga-me, quando teve o seu primeiro contacto com a arte da escultura? Difícil de responder. Teríamos que questionar o que é a arte e o que é escultura. Desde que me lembro, sempre usei materiais vários para criar volumes, coisas de criança. Efetivamente, desde sempre que achei que quando fosse adulta, seria escultora. Fiz por isso a minha opção de vir de Luanda, onde estava a estudar, para Lisboa para seguir os meus estudos na Escola Superior de Belas Artes, hoje faculdade de Belas Artes. Contudo, a vida familiar obrigou-me a fazer um interregno, longo demais, e podemos considerar que voltei à atividade artística há perto de 10 anos 2 – Não sentiu falta do toque artístico durante esse período? Claro que sim, durante esse interregno, esculpi personalidades, valores, capacidades. Enfim, algum saber, dinâmico e válido para os alunos que tive, quer no secundário, quer no ensino superior. Porém, o apelo da escultura, acompanhou-me sempre, criando-me um vazio silencioso e magoado que, esporádica e paulatinamente, fui aligeirado com alguma criação escultórica. Por fim, entendi que tinha que criar sem grandes períodos de interrupção. 3 – Podemos, então, dizer que foi uma escultora de virtudes, durante essa fase? Seria demasiada pretensão minha parte, mas ajudou-me a descobrir valores. Tenho encaminhado alguns jovens a seguirem percursos bem interessantes, mas o mérito foi sempre deles, evidentemente 4 – Falando novamente da sua arte. Teve algum mentor? Tive professores fantásticos com os quais aprendi muito. Lagoa Henriques ensinou-me a apreciar e fruir as mais pequenas coisas, desde um cheiro, à cor exuberante ou subtil de uma qualquer planta, à poesia de Fernando Pessoa, às formas quer dos volumes, quer do traço mais sensível e sinuoso, Helder Baptista mostrou-me a beleza, irreverência e capacidade de experimentação sem quaisquer receios, característicos da arte moderna, foi por meio dele que me apaixonei por Henry Moore, meu escultor de eleição e pela forma e cor arrojadas das esculturas de Martins Correia, por sua vez, toda a aprendizagem do que sei acerca de escultura e da sua complexidade, com o escultor António Duarte. Terão sido talvez as minhas grandes referências. Por isso, experimento sem quaisquer receios ou pudores quer a tridimensionalidade pura, quer a bidimensionalidade, com a qual rasgo o espaço, impondo a sua presença, abordo o figurativo, desconstruo-o ou mesmo entro no quase abstrato. De Henry Moore aprendi o valor do vazio enquanto espaço/forma que se impõe com tanta importância a superfície que enforma a configuração da obra 5 – De que forma definiria o seu estilo? Quem experimenta como eu, quem vai do quase surrealismo à emoção ou incómodo de algo que não está bem, quem concebe por vezes como se de uma visão cubista se tratasse, sem contudo o ser, dificilmente se sente espartilhada num estilo…francamente penso que não tenho, poderei talvez referir que o meu trabalho é um manifesto de permanentes experimentações, quer ao nível de materiais díspares, quer dos sentidos e limites das conceções plásticas, que são um reflexo dos meus amores, das minhas angústias, dos meus sentires nos momentos de criação de cada uma das obras. 6 – Consegue eleger as três obras predilectas da sua carreira? Todas as obras são filhos e não se elegem filhos, mas gosto do Monumento a Baden-Powell, “Ânfora” que representa um momento familiar muito doloroso de grande angústia na minha vida, momento esse que me fez questionar que se não acreditasse em Deus, eu tinha aí a prova da Sua existência. Não posso deixar de mencionar a escultura que se encontra numa rotunda em Mangualde, que nasceu de uma promessa que fiz ao meu pai. 7 – A esse respeito: toda a pessoa que se dirige a Mangualde contorna a sua estátua. Que sentimentos invadem a Anabela? Já não é minha, agora deixei de ser a escultora e limito-me a ser mera usufruidora, mas reconheço que quando vejo um carro parar ou pessoas a sair para a contemplarem (algumas delas estrangeiras), sinto alguma emoção, não me é indiferente. 8 – Diga-me, Anabela, como é que avalia o estado da cultura em Portugal no geral e Viseu no particular? Temo que a nossa cultura esteja em banho-maria, pior, que os nossos governantes não tenham a noção de que é a cultura que faz um povo evoluir e um país crescer. Temo que a cultura seja para abater. No que diz respeito a Viseu, reflete um pouco o que vai pelo país, apesar de pontualmente um teimoso aqui ou ali (e estou-me a lembrar por exemplo do Caos, casa de artes e ofícios), ainda ir respirando algum ar puro. Não sinto que os artistas sejam incentivados ou apoiados no nosso país.

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