O Escriba

Daniel Machado, conhecido no sussurrar das ruas por Kadosh, é um viseense que desde cedo se enamorou da expressão poética e, mais tarde, do Hip-Hop. Partilha com os leitores do Notícias de Viseu o seu perfil, estética e visão sobre a actual cultura do seu estilo.

1 – Qual é a origem do nome artístico Kadosh?

É engraçada. No início, tinha eu os meus 13/14 anos, lancei-me com um nome artístico muito mais simples: KD. Passo a explicar, de forma muito simples e, naturalmente, na inocência da minha adolescência, K seria de “Carlos” enquanto D de “Daniel”, os meus dois primeiros nomes. No começo o nome não foi nada mal aceite, mas apercebi-me de que a sua interpretação era errada. “K” foi associado a “King” enquanto que “D” era mais óbvio. Visto numa perspetiva global, não foi propriamente uma boa ideia utilizar K para expressar o que queria, mas foi uma maneira que encontrei para fugir, talvez, a um “CD”. Assim, procurei encontrar um nome diferente mas mantendo sempre esta base de origem. Surgiu então Kadosh. Apareceu-me na cabeça do nada e ficou. Ficou porque tem uma sonoridade engraçada e tem na sua origem essa base tão simples mas tão importante para mim, que marca o meu começo no Hip-Hop.

2 – Quando é que surgiu a necessidade de expressares os teus sentimentos através da escrita e da música? Existiu algum momento determinante ou foi um processo natural?

Eu desde muito pequeno comecei a escrever. Frases, quadras, poemas soltos e simples. Na altura, já denotavam uma certa capacidade escrita. Muitas vezes desabafava sobre problemas em casa, desgostos pessoais, amorosos. De certa forma achava inútil um “diário” quando tinha ao meu lado resmas de papel branco para viajar até à lua e voltar. Num primeiro momento foi escrita, apenas escrita. Mais tarde entrou a música na minha vida e eu tentei conciliar estas duas partes. Soava mal, pessimamente mal, não tinha ritmo, dicção, controlo, “flow”; mas eu gostava, fazia-me sentir feliz e continuar a trabalhar para sair melhor. Neste início, o facto de eu ter continuado a querer melhor, nunca foi com intenção de mostrar, simplesmente ser melhor, por mim e para mim. Em relação à pergunta: teve momentos determinantes, talvez mais associados à dor e a um querer desabafar terrível, mas tudo foi conduzido por um processo natural – apaixonei-me pelo HipHop.

3 – Ao estudar o teu percurso apercebi-me que preparavas uma mixtape designada de “Deixa-me Cantar”. Concluíste esse trabalho?

Não. Consegui montar um estúdio caseiro e tive essa intenção. No meio do processo apercebi-me que não tinha a qualidade que queria (sendo eu a gravar, produzir, masterizar sem qualquer conhecimento nesta área, claro que houve projetos com qualidade muito baixa). Tentei outras vias, outros estúdios que cobravam bastante para algo tão simples para mim: cantar por cima de um beat da internet. Claro que na altura fui inocente e mais tarde vim-me a aperceber que não é assim tão simples como parece. Voltando à questão e, sem referir nomes, outro colega artístico viseense do ramo ofereceu-se para ajudar-me a lançar e a progredir e eu caí na cantiga para mais tarde dar de caras com o provérbio: “ amigos amigos, negócios à parte”. Foi aí que larguei a ideia e apostei em sons soltos – até porque queria fazer um trabalho de prestígio e mais profissional, com beats originais, outro tipo de masterização…

4 – Há alguma faixa que gostes particularmente? Algum filho artístico pródigo?

Dos que já deixei a público, claramente: Carta para Ti. No entanto, tenho faixas escritas e finalizadas que, na minha opinião, batem qualquer uma que tenha sido lançada.

5 – Ao analisar algumas das tuas letras, denoto que contrasta com o rap que, à data de hoje, é massivamente explorado: rap da ostentação e da rima fácil. Entendes que o rap, como era na sua génese, deve constituir, acima de tudo, um veículo de mensagens poéticas, sociais, urbanas e de intervenção ou deve dar espaço a uma pluralidade ainda maior?

Um primeiro ponto importante: o rap começou na rua. Foi a partir daí que todas essas mensagens sociais e interventivas começaram, por pessoas expostas a circunstâncias cruéis da vida. O problema começa quando as pessoas ouvem um “Fuck the Police” e associam a um gesto “gangsta” em vez de refletirem e chegarem à conclusão que se calhar o “Fuck the Police” criticava os atos de brutalidade policial que se davam na altura e não era apenas uma atitude desrespeitosa.

Um segundo ponto – escrever sobre o que cada um passa é fundamental para criar algo real e sentido. Se eu nunca passei fome não vou dizer que passei, tal e qual como se nunca tive a mandar rolos de notas pela cidade equivalentemente não irei dizer que o fiz. Acho que a questão está aí. Metade dos Mc’s que se ouvem hoje em dia, desculpa-me o termo mas, só falam bosta. Depois queixam-se quando vêm pessoas dizer que o Hiphop, cada vez mais, se está a tornar numa forma de arte simples, fácil, e de carisma falso. Mas não é. O enquadramento gramático, a métrica, as metáforas, o sentido das palavras… tudo importa para mim porque nunca quis o fácil e básico. Gosto de provar que o rap é algo bem mais complexo do que a maioria pensa e faz parecer. A ver A verdade é que isso acontece porque hoje em dia valoriza-se o mediano e despreza-se o bom. Como se diz, vozes com conteúdo não abrangem maiorias.

Por fim resta-me dizer que concordo plenamente com pluralidade musical, aliás até apoio, mas se for algo com nexo e não meros gritos e berros que eu oiço produzidos com auto-tune.

6 – Quais as temáticas mais presentes na tua música?

Tento sempre diversificar, tanto no estilo como na mensagem, não gosto de estar sempre a bater no ceguinho. De certa forma já abordei tantas temáticas que nem sei qual delas a mais presente na minha música. Talvez a que mais se sobressai tanto direta como indiretamente será o gosto e a necessidade de fazer essa mesma música.

7 – Consideras que a crescente popularização do hip-hop prejudicou a natureza underground dessa cultura ou, por outro lado, propiciou um maior número de oportunidades para os artistas?

Excelente pergunta. As duas coisas. Há duas perspetivas a ser analisadas (relação causa-consequência):

Num primeiro plano, o facto do Hiphop ser um estilo cada vez mais procurado e ouvido proporcionou possibilidades a vários Mc’s como nunca antes tinham sido vistas: concertos, atuações, entrevistas, até publicidade. Obviamente que, se temos um estilo cada vez mais enraizado, há que ter consciência do que se diz, assim como de quem se ouve. Se passa na rádio não convém dizer umas certas coisas que todos sabemos. Se graúdos ouvem, também não. A questão está na forma em que analisamos as coisas. Se fizermos as contas ao contrário se calhar o HipHop português não tinha chegado onde chegou se não se tivesse largado essa veia “underground”, “de ghetto”, “bairro”. (estou meramente a analisar factos, até porque o underground é o estilo que mais gosto de ouvir)

Por outro lado, tornando-se cada vez mais comercial, levou-nos a um estado em que só se faz HipHop banal: aquele que bate porque sim, e que vende porque assado. Já ninguém tem interesse em rimar underground porque o que passa nas playlists são sons para a criançada abanar o rabo e sonharem em ter uma vida de fortunas e vinho verde. Banal. Daí o meu interesse tão grande no underground: puro e real.

8 – Quanto às influências, queres destacar alguns nomes?

Influências básicas nacionais como Sam The Kid e Valete. Alguma veia poética de Mundo, a safadice de Regula, Bellini e underground de Chullage.

9 – Som predileto desde sempre.

Poetas de Karaoke – Neste momento um som banalizado e comercial, quando a mensagem visava, precisamente, a comercialização. Aconselho a quem realmente gosta desta forma de arte, a tentar perceber detalhadamente o que é que o prodígio Samuel tentou fazer com aquilo. Resumidamente, quem ele critica e ridiculariza ao longo da faixa inteira, hoje canta sem sequer se aperceber disso. É por isso que me desperta tanto interesse, por vezes é preciso ver o outro lado da moeda antes de a aceitar.

10 – Palavra que te define.

Como artista: trabalhador.

Como pessoa: amigo.

11 – Onde é que os leitores podem encontrar os teus trabalhos?

Maioritariamente no Youtube sendo só necessário pesquisar o nome “Kadosh” acrescido do nome da faixa que desejam ouvir: Carta para Ti, Hoje Acordei, Nem por mil Palavras, Como a vida me mata (…).

10 – Tens algum projeto a ser lançado em breve?

Em breve, especificamente, não posso dizer que sim. Tenho trabalhos feitos. Foi uma das coisas que prometi a quem me ouvia e acompanhava, não parar de fazer o que gosto. E a verdade é que não parei. Em público ou em privado continuo.

11 – Qual a mensagem que endereças aos teus ouvintes?

Para esperarem. A pressa é inimiga da perfeição. E eu prometo que vou voltar, mais tarde ou mais cedo. Quero que quem me acompanhou e presenciou a minha evolução desde miúdo entenda que, neste momento, a minha vida não é o HipHop apesar de haver uma conexão especial. Mas quero que acreditem em mim e que nunca deixem de acreditar, porque um dia esse momento chegará. E quando chegar, meus amigos, faremos do céu a nossa terra!..

Francisco da Paixão

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