O bailarino e coreógrafo Filipe Pereira nasceu e cresceu ao ritmo do Santuário de Fátima. Ontem à noite, 31 de agosto, 2º dia do Planalto, no Pavilhão da Escola Secundária, contou abertamente a sua história de vida, como quem compõe, passo a passo, um arranjo floral, o nome que deu à sua atuação e que tem tudo a ver com o seu percurso, as suas vivências, as angústias que viveu até se transformar no que é hoje. Uma história que podia ser a de qualquer um de nós.
Ainda pequeno, Filipe, nascido numa família religiosa de Fátima, começou por frequentar a Igreja e a enfeitá-la com arranjos florais, uma das suas paixões. À medida que a cidade foi crescendo floresceram lojas de lembranças religiosas, atos de fé fervorosa, gente em sofrimento, procissões infindáveis. O bailarino narra as transformações de uma terra que vai sobrevivendo à custa da fé, enquanto acrescenta flores ao seu arranjo.
O processo decrescimento foi doloroso também do ponto de vista pessoal. A descoberta do corpo e do prazer fê-lo sentir-se em pecado. Mas continuou a fazê-lo. Namorar fê-lo sentir-se culpado. Mais flores no arranjo. Descobrir que a sua orientação sexual era diferente acrescentou mais culpabilidade e mais flores. Afinal, ser religioso fazia doer. Filipe tornou-se ateu. E dançarino. O arranjo vai tomando forma. Passam filmes num ecrã. Ouve-se a voz da avó, questionando-o sobre a sua fé.
Cantores populares dedicam músicas a Fátima. Mas uma delas é cantada por Filipe, a emocionante canção do adeus à Virgem, após a qual o bailarino desdobra um lenço branco e na parte onde, na cerimónia habitual em Fátima, os crentes se despedem abanando o lenço, diz bye, bye. Ironia?
Está o arranjo pronto. Lindo! O público de “coração cheio”. A descrição da performance assenta na perfeição no sentimento com que os presentes descrevem a sensação final: “Filipe deixa-nos a pensar sobre quanto do nosso passado está em tudo o que fazemos, quanto do nosso destino está escrito e quanto está nas nossas mãos”.
No fim da conversa, a conversa com a curadora do santuário da Nossa Senhora da Lapa, Ana Nunes, e o pároco local, Padre Diamantino Duarte, foi longa e incentivou o público a fazer várias questões a Filipe Pereira, que respondeu naturalmente. As artes florais continuam a fazer parte da sua vida. Se o adeus a Fátima era ironia, como lhe perguntou o diretor artístico do Planalto, Luís André Sá, ficamos por saber.