É domingo e acordo com o corpo dorido, fruto da idade e de noites mal dormidas, porque o desassossego provoca estes danos colaterais. Hoje não tenho compromissos, porque apesar desta vida de reformado, debato-me com a terrível falta de tempo, mas, às vezes, sem saber o que fazer com ele. O ginásio espera-me, nesta rotina de dar “vida à vida” que se vai esbatendo nestes já sessenta anos com muito desgaste do tempo e das “avarias”, sim, porque somos uma máquina perfeita, mas com defeitos e sem garantia fixa. Aliás, há muito que o meu cardiologista me disse que o meu prazo de validade poderia ter terminado há mais de vinte anos.
Entro no carro, a caminho do ginásio, porque a mente, por vezes, tem mais força do que o corpo onde “vive” e por ele é transportada. O rádio está sempre ligado e, como sou homem fiel e de rotinas, por agora a emissora é a mesma. A canção que passa é linda (Espelho de água – Paulo Gonzo) e, apesar de ter sido patrocinada pela EDP, vem muito a propósito neste final de Verão terrível de seca e fogos que agravam, e de que maneira, o nosso ambiente e uma das suas fontes vitais: a água. Se não fosse a conduzir, apetecia-me fechar os olhos e relembrar o videoclip utilizado na canção, aquando do seu lançamento. Vou sorvendo a letra e a musica: “Olhos bem abertos, percorro a paisagem e guardo o que vejo, para sempre, uma clara imagem. Um manto imenso de água…, de um azul quase profundo. Um sopro de ar, faz girar, o mundo melhor, raio de sol, luz maior, para partilhar…Faz da vida, paixão energia, que toca sempre mais alguém. Vai, espelho de água, trata e guarda, o que é nosso afinal. Em nós, vive a arte, de ser parte, de um mundo melhor. Eu sei, que gestos banais, parecem pouco, mas talvez sejam fundamentais”. Sim, parecem banais os gestos, que todos deveríamos praticar na defesa deste mundo melhor e que são de vital importância na preservação daquilo que é nosso.
Sento-me na bicicleta estática do ginásio e, para ajudar no “sacrifício” de castigar o corpo, ligo a televisão do sistema do ginásio e deixo-me ficar na transmissão da missa dominical pela RTP, diretamente, duma igreja do Funchal. Faço isso com frequência, sempre na esperança de que algum padre celebrante me surpreenda nas homilias. Por vezes, a surpresa é enorme, quer pelo tema da homilia quer pelas qualidades oratórias do celebrante. Tal como aconteceu há duas semanas e diretamente duma igreja de Ponta Delgada, na ilha de S. Miguel, hoje o jovem celebrante contagiou-me, porque o tema do “perdão” e as suas qualidades comunicacionais atingiram-me a alma.
Perdoar é algo que deveria ser assumido por todos os cidadãos, independentemente da sua crença religiosa, porque é um valor civilizacional. Mas não é fácil perdoar a quem nos fez mal ou mesmo termos a coragem de, humildemente, pedirmos perdão, porque sentiríamos esse gesto como uma humilhação. Contudo, a humildade é uma característica apaziguadora de outros potenciais conflitos, pessoais ou coletivos. Por vezes, egoisticamente, pedimos perdão por algumas das nossas faltas, mas já não somos capazes de conceder o mesmo a alguém que nos fez algo semelhante ou mesmo de menor importância. O celebrante prendeu-me ao tema tão atual, recorrendo às parábolas de há mais de dois mil anos e à realidade atual, pois é algo que a todos nos toca, quer como ofendidos quer como ofensores de alguém, por vezes bem próximo de nós nos laços afetivos e familiares. Aliás, as câmaras da televisão mostraram algumas das fiéis a secarem as lágrimas e outras exibiam uma imagem que tocavam fundo aos expectadores.
Vivemos uma época muito complicada nesta matéria, onde o ódio, a vingança, a ganância, o crime, o desamor e as guerras fazem deste mundo e de nós, por vezes, um inferno. Por isso, as “forças vivas do bem” têm muito para fazer com que este mundo seja bem melhor do que está a ser. As religiões e os seus crentes têm muita culpa nestes comportamentos, mas nelas há, garantidamente, líderes e seguidores que condenam as violências que se praticam, muitas do foro meramente individual, mas outras movidas pelas instituições religiosas e políticas, incluindo os governantes que, ávidos do poder, da vingança e da ganância sacrificam milhões de inocentes. Assumo que sou católico, não fanático e muito seletivo e independente nas minhas crenças e práticas, – o meu lema é , chegar a Deus através dos humanos, procurando praticar neles e com eles os valores cristãos – e confesso que me “reaproximei” mais da igreja católica depois de me aperceber dos perigos que as sociedades cristãs correm , mais no futuro, porque a expansão e a agressividade e fanatismos de outras religiões, com o beneplácito de muitos governantes europeus, faz delas e dos seus fanáticos, uma séria ameaça à paz e aos cidadãos europeus e aos seus valores culturais e educacionais. Exagero? Que a realidade no tempo adulto dos meus netos, ainda criancinhas, desminta esta minha profecia. Muito tem que ser feito para que a convivência entre religiões, raças e povos seja pacifica e não belicista e com consequências imprevisíveis. É uma tarefa de todos e não apenas dos governantes mundiais.
Porque a dose de exercício físico ainda não era a recomendada, deu ainda para ver na televisão um episódio, duma série que desconhecia (Caminhos de Irmandade) que me maravilhou durante meia hora. A personagem portuguesa, uma jovem, tenta explicar o passado glorioso de Portugal a um jovem espanhol. Uma delícia, pelos textos, pelas imagens e pela originalidade narrativa, fresca e cativante. Ai aquilo que eu aprendi ou rememorei acerca do nosso passado. A não perder, para fortalecer o ego português e o orgulho do nosso passado, como lição para o presente.
Com o corpo liberto de toxinas e mais “fresco” do que estava ao acordar, porque a mente o obrigou a lutar, e com a alma cheias de mensagens de esperança, num mundo e num meio que corre sérios riscos, já merecia o almoço, não de guerreiro lusitano, mas de um cidadão consciente de que este Mundo, onde estamos de passagem, merece os nossos cuidados. A natureza está “revoltada e violenta”….
Serafim Marques
Economista Reformado