Para Angola… Rapidamente e em força

A maior parte daqueles soldados eram miúdos… Alguns nunca tinham andado de barco… Outros nem sequer tinham visto tanta água… A verdade é que as condições do mar e do próprio navio… Deixaram a maior parte deles agoniados… As circunstâncias eram realmente deploráveis… Comida repugnante… Água imprópria para consumo e quase inexistente… O convés medonho e asqueroso… Odor nauseabundo que circulava no espaço… Peganhento e escorregadio… A sujidade acumulava-se… Num composto de temperamentos que ali se achavam… Amedrontados… Retraídos e conversadores… Intimidados… Galhofeiros e desesperados… Os que tinham a mania que eram espertos… Os que sabiam viver e os que iam vivendo… Houve que não comesse quase nada… Quem não dormisse… Quem amarelasse e vomitasse…

Faziam exactamente dez anos desde que o seu irmão mais velho embarcara no Cais da Rocha do Conde de Óbidos rumo às colónias… Para participar numa guerra de homens… Que estupidamente teimavam em segurar terras conquistadas no tempo dos descobrimentos… Guerra colonial… Uma espécie de luta transoceânica entre povos… Por território… Para uns por tradição… Costume e herança… Para ouros… Especialmente por autodeterminação… Mesmo tanto tempo depois da monarquia… Havia quem quisesse que as províncias ultramarinas fizessem parte da metrópole… Enfim… O seu irmão mais velho já tinha regressado… Um acidente de avião… Fez com que voltasse mais cedo… Como herança trouxe uma marca na testa e algumas alterações de humor… Facilmente se enervava… Por pouco encolerizava… A guerra deu-lhe menos paciência para as coisas… Tolerância e condescendência… Com o tempo casara e seguia a vida como podia… São e salvo… Pelo menos… Fisicamente…

Ao chegar a Luanda… Sidónio e os seus Camaradas de armas foram para o Campo Militar do Grafanil… Ao chegar… Uma espécie de capela… À sua frente uma placa com a seguinte inscrição: Militar… Este é o lugar onde podes louvar a deus… Pedir pela tua pátria e pela tua família… Rezar pelos teus camaradas que tombaram no cumprimento do dever… Todos leram e todos se incomodaram… Crentes e não crentes…

Passados cerca de três ou quatro anos da partida do irmão mais velho… Sucedeu o mesmo com Américo… O irmão do meio… Com esse foi um pouco pior… Retornou irreconhecível… Mais calado e menos animado… E tanto que ele era expansivo… Sempre disposto para a brincadeira… Regressara diferente… Completamente transfigurado… Mais calado e distante… Fumava cigarro atrás de cigarro… Tremia das mãos e transportava um olhar vazio… Perturbado e ausente… Bem distinto do dia em que partira do Cais da Rocha do Conde de Óbidos… No Vera Cruz…

No Grafanil… Seguiu-se uma espécie de estágio ou de curso de especialização… Preparação física e psicológica… Género de lavagem cerebral… Treino do tiro… Enfim… Uma preparação para ambientes mais restringidos e circunscritos na consistência da floresta… Manipulação de consciências joviais e ainda cruas… Clister ao nível do entendimento… Formatação dos sentidos… Através do visionamento de filmes acerca da pátria… Conquistas… Operações e missões… A exaltação de Salazar numa ode ao estado novo… Mouzinho de Albuquerque… A raça… Aljubarrota e D. Nuno Alvares Pereira… D. Afonso Henriques… Paradas militares e desfiles… Os abusos da guerrilha para com os brancos… Crianças empaladas… Mulheres de pernas abertas estupradas vezes sem conta até à morte… Corpos de homens fragmentados e desmembrados… Enfim… Para além disto… Sidónio também verificava o inverso… Nos excessos dos militares portugueses… Com cabeças de pretos suspensas… Pénis… Orelhas e dedos em frascos… Que é isto?… (Interpelava-se assombrado e perplexo)… Que luta é esta pelas colónias?… Formas evidentes para dar razões… Propósitos e fundamentos para ambos os lados… Uma guerra pútrida sem condições… Organização ou estrutura… De material desusado e rançoso… Rádios que não funcionavam… Viaturas apodrecidas… Falta de mapas… Avarias… Mausers… G3 e FBP… Lança granadas e morteiros… Tudo obsoleto e ultrapassado… Como o regime…

No final da tarde… De Nambuangongo para Quixico… Uma coluna de camiões fazia o abastecimento para a tropa e para alguns civis que habitavam uma fazenda… Alguns jipes faziam a guarda a um transporte especial… Sidónio nunca chegou a saber o que se carregava de tão importante… Inesperadamente… Ouviram-se tiros… A coluna parou… Alguns tiros de bazuca responderam ao ataque na direcção de umas palmeiras… Fez-se silêncio… A pé… Alguns soldados avançaram a fim de fazer o reconhecimento… Sidónio também foi… O coração latejava… O olhos examinavam toda a área… Vigilantes e atentos… Ao chegarem à zona das palmeiras… Três corpos despedaçados jaziam no chão de capim… Todos mortos… Um deles não tinha mais de quinze anos… Filhos da puta!… (Verbalizou um dos soldados… Desferindo com violência e desconsideração… Uma biqueirada num dos cadáveres)… Sidónio engoliu em seco e confinou os olhos… Enojado… Um outro camarada caiu de joelhos e vomitou…

Durante dez anos… Porque era essa a diferença que tinha do seu irmão mais velho… Sidónio ia contando os anos que lhe faltavam… Pedindo para si mesmo… Ou para uma entidade superior… Ainda que não fosse sequer crente… Para que se livrasse dessa longa viagem…

Na realidade… Os tempos eram outros… Havia contestação ao governo de Salazar… O estado novo parecia ter os dias contados… Ainda assim… Continuavam as incorporações e o embarque de soldados rumo a África… Sabia inclusivamente… De gente que entretanto fugira… Para França ou outros países… A salto… Ainda cogitou em fazê-lo… Mas o seu pai nunca o aprovaria… Nem tão-pouco o perdoaria… E naquele tempo… Era ele o homem da casa… Ai se eu fosse pai!… (Desabafava enfraquecido pela conjuntura vigente)… Filho meu não ia para a guerra!…

A coluna continuou… Nos soldados… Um misto de maior confiança… Afinal… A tropa é dura!… Há que ser respeitada… Seguiram pela estrada mais descontraídos… Ignorando… Provavelmente… Alguns dos procedimentos habituais de segurança e de vigilância… Alguns dos soldados descansavam à vez…

Que governo é este?… (Interrogava-se perplexo e confuso)… Que pátria de merda é esta?… Que dá armas aos seus filhos para matar… Filhos da mesma pátria… Numa terra distante… Lutar numa guerra que não compreendem ou entendem… A milhares de quilómetros de distância… Quanto mais durará este calvário?…

Uma cambada de velhos caducos presididos por Salazar… Jogavam uma guerra… Sentenciando toda uma geração… Sem dar sequer explicações aos seus intervenientes… Na sua cabeça… E naquele momento… As palavras do presidente do conselho… Monocórdicas e mofosas… Acerca da conservação do império politico e económico português… Que interessava isso a Sidónio e aos outros?… Que ganhariam com a guerra?… Não passavam de miseráveis em Portugal… Sem condições elementares de vida… Oportunidades… Onde estava a continuidade dos estudos?… O ensino superior?… Nada disso!… (Comprova Sidónio… Oscilando a cabeça desalentado)… Não tivesse sido ele uma vitima do trabalho infantil e do abandono precoce dos estudos… Que me interessa o domínio politico e económico?… Que ganhei eu com essa merda?… Jamais passarei do que sou!… Pobre!…

No Cais da Rocha do Conde de Óbidos… O exército desfilava perante um alto representante militar… Fazendo continência… A parada tinha sumptuosidade e impressionava… Famílias de todas as idades e condições apinhavam-se nos balcões da gare marítima… Gesticulando e clamando… Acenando lenços brancos e segurando cartazes com o nome do combatente de que se despediam… O desfile comovia e inebriava… As senhoras frígidas do Movimento Nacional Feminino distribuíam lembranças e panfletos acerca da região de destino… Como se fossem embarcar para férias…

Subitamente… Uma explosão eclodiu no ar… Numerosos tiros… Fumo e ruídos desconformes… Ensurdecedores…. Corpos tombaram e saltaram como bonecos… Um dos jipes despistou-se… Sidónio foi cuspido violentamente…

A maior parte destes pais… Consideravam importante a participação dos filhos na guerra do ultramar… Afinal… Tinham bem presentes as palavras de ordem da época… Deus… Pátria e Família… Premissas de um tempo… Arcaico e senil… Razão de orgulho poder oferece-los à nação multicultural… Pelo estado e pela grei!… As ordens da velha carcaça eram claras e directas… Para Angola!… Rapidamente e em força!…

Em pouco tempo… Dez anos passaram… Desde os onze até aos vinte e um… Sidónio trabalhou… Estudou e ainda conseguiu fazer algum desporto… Era essa a sua grande paixão… Para além… Claro está… Dos namoricos fugazes nos bailes populares e arraias… Que todos os fins de semana o faziam abstrair-se do tempo que corria e inquietava… Assombrando-o com preocupações… Sempre presentes e desconcertantes… Existência a prazo… Adiamento… Demora… Que esboroava depressa demais… Parece que foi ontem!… (Matutava… No dia em que foi mobilizado)… A sua vez chegara!…

Da despedida dos seus irmãos mais velhos… Recordava com tristeza as lágrimas da mãe e do pai… Nunca o havia visto chorar senão naquelas ocasiões… (Ao pai)… Olhos amedrontados e lacrimejantes dos irmãos… Que de aspecto subordinado e teleguiado… Partiam sem vontade… Apáticos e alheados… Almas desfeitas e desencorajadas… Rumo a um destino incógnito…

Na mata… A escuridão da noite e o cheiro da guerra… Onde estou?… (Investigava Sidónio… Acordando estonteado e com dores)… A temporada das chuvas expirava aos poucos… Em breve o cacimbo… No capim… O sangue… A sede e a fome… Quanto tempo havia passado?… (Perguntava-se aturdido)… Ouviu vozes… Alguns soldados patrulhavam as imediações… O pânico instalava-se… Serão tugas ou turras?… Não parecem ser portugueses!… (Verificava apavorado)… Tenho que sair daqui!.. A força era escassa… Quase nula… As dores no corpo enormes e excessivamente incomodativas… Arrastou-se pela orla da mata… Refundindo-se paulatinamente… A algum sitio isto há-de dar!… (Cogitava)… Sidónio estava ferido e completamente perdido dos seus colegas… Um ataque surpresa fê-los saltar do jipe… Será que me vou safar?… (Interrogava-se atemorizado)… Sem forças… Encostou-se a uma pedra para descansar… Já não sentia fome… Agora a fraqueza parecia ser agradável… Respirou fundo e fechou os olhos… Por dentro de si… Flutuava em imagens antigas… Na rua onde morava… Uma marcha cadente tocava… As lágrimas da sua mãe… O abraço apertado do pai… A escola e os bailes de fim de semana… Os irmãos distantes… Vizinhos e vizinhas… Todos juntos no seu funeral…

No dia da partida… Decidiu não dizer nada a ninguém… Nem sequer para onde ia e arrancou… Não queria rever para si aqueles quadros tristes que vira aquando da partida dos seus irmãos… Tanta gente junta… Tanta gente triste… Ambiente de consternação em conjunto… Sem recato ou vergonha pela expressão… Demasiado compenetrados no que era verdadeiramente seu… Arrancavam máscaras… Não haviam disfarces ou encobrimentos… Os semblantes caiam por terra e as vontades de abraçar e apertar eram levadas ao estremo… Ainda que… Nesse tempo… Os afectos fossem bem diferentes do que são hoje…

No cais pensava… Sozinho… Acerca das razões da guerra… Que tinha aquela gente com isso?… Que mal fizeram os pretos?… Porquê importunar os pretos?… Não estariam eles certos?… Enfim…

Aquando do embarque… Os soldados procuravam o seu lugar no beliche montado nos porões… Arrumavam a bagagem e rapidamente corriam para o convés… Literalmente… Lutavam por um lugar de destaque… Para fazer os últimos acenos à família… O navio recolheu as escadas… A sirene silvou… No ar… Pelos altifalantes rotos e nasalados… A banda sonora:

Angola é nossa! Angola é nossa! Angola é nossa! Angola é nossa!…

Demasiados homens choravam… Outros pareciam demasiado felizes em defender a pátria… Nossa?… (Questionou em tom de desafio um soldado que permanecia ao seu lado)… Nem música de jeito temos… E este cheiro?… Parecemos sardinhas em lata!… Sidónio olhou-o com atenção… A musica avançava:

Ó povo heróico Português… Num esforço estóico outra vez… Tens de lutar… Vencer… Esmagar… A vil traição… Pra triunfar… Valor te dá o teres razão…

Por trás de sidónio alguém diz em tom de aviso: Os pretos que me aguardem!… Que me aguardem…! (Insistia o soldado com pronúncia nortenha… Muito alto e forte)…

Sidónio contemplou-o… Assim como à multidão… De dentro e de fora do barco… Este é mesmo bimbo!… Nem sabe ao que vai!… (Segredou o camarada de há pouco… Revoluteando os olhos… Em sinal de alienação)… Imediatamente… Alguns soldados… Mais fervorosos e entusiasmados começaram gritar por Portugal… Desafortunados… Infelizes na desventura… Tão novos e com tão pouco traquejo… Na rota do insondado que julgavam dominar… Como uma bandeira ou hino… Guerra impiedosa e cruel que desconheciam… Sem regras e sem clemência… Arrebatados prosseguiam:

Angola é nossa gritarei… É carne… É sangue da nossa grei… Sem hesitar… Pra defender… É pelejar até vencer…

O navio afastava-se lentamente… Rumo à foz do Tejo… Em frente à Torre de Belém… Vislumbraram o Infante D. Henrique na sua expedição… A música ganhou maior fulgor e representatividade… Tal como no tempo dos descobrimentos… Uma empresa montada… Numa missão maior… Para Angola!… Rapidamente e em força!… Parecia ecoar a velha carcaça… Decadente… Alastrando-se no ar… Nas vagas do mar… Como outros ancestrais… Remotos… Diminutos… Parvos e sórdidos… Prepotentes tiranos… Reaccionários… Atrasados e ultrapassados…

Castigar com o destemor… Ancestral… Deter… Destroçar… Vencer… Escorraçar… E gritar… Canção marcada por um ritmo… Orquestra… Tambores em marcha… Canção de guerra… Hino fascista e colonialista… Sidónio contemplava a multidão que ao longe deixava de ver… Uma lágrima escorreu-lhe pelo rosto… Disfarçou… Ao seu lado… Verificou que não era o único… Alguns não se seguravam e choravam como crianças… Outros pareciam delirar com as palavras da canção… Cantando os versos com fulgor e emoção:

Angola é nossa… Angola é nossa!… É nossa!… É nossa!… Angola é Portugaaaaaaal!…

É estranho que esta canção ficaria bem num outro tipo de estado!… (Afirmou o camarada que ia ao seu lado)… Sidónio não entendeu e demonstrou-o… Podia ser socialista… Comunista… Fascista!… É tudo a mesma merda!… (Desabafou sorrindo)…

Canções de fulgor… Cânticos paternalistas… Para encorajar e altear querenças à insânia…

Coitados!… (Insistiu)… Nem sabem ao que vão!…

E tu sabes?… (Demandou Sidónio)…

Calculo!… (Replicou com convicção… Revelando um leve sorriso amarelado pelo enjoo começava a sentir)…

À medida que saíam pela embocadura que os levaria ao mar… Tocou o hino nacional… Alguns cantaram… Outros choraram… Muitos… Resignados permaneceram atónitos enquanto escutavam as palavras do costume:

Heróis do mar… Nobre povo… Nação valente…  Imortal… Levantai hoje de novo… O esplendor de Portugal!…

Sem preparo qualquer… Avançaram para o novo endereço…

Já pensaste que alguns destes não voltarão?… (Confidenciou o mesmo camarada)… Outros virão aleijados e os restantes…

Os restantes quê?… (Interrompeu Sidónio)…

Os restantes retornarão psicologicamente danificados!… (Disse… Batendo com o dedo na sua própria cabeça)…

No interior desordenado de Sidónio… A imprecisão e o obscurantismo… A preocupação e a revolta… Pela falta de sentido da guerra…

No Cais da Rocha do Conde de ÓbidosSozinho… Especulava acerca do que o esperava… Crianças… Novos e velhos despediam-se dos militares…

Devia ter-me despedido dos meus pais!… (Considerou… Talvez arrependido)… Respirou fundo e encerrou os olhos por um instante…

Sidónio!… (Chamou a sua mãe… Com a sua voz habitual… Musicada e muito aguda)…

Estupefacto… Avistou os seus pais…

Pensavas que nos enganavas rapaz?… (Indagou o seu pai)… Já mandei para cá os teus irmãos!… Achas que não tentaram fazer os mesmo?…

Em lágrimas… Abraçaram-se… O seu pai abraçou-o como nunca mais o fez… Nem no dia do seu regresso…

O camarada do barco chamava-se Costa… Mais conhecido por Santarém… Afinal.. Era essa a sua origem… Faleceu no ataque à coluna militar… O seu corpo ficou despedaçado e irreconhecível… Segundo lhe disseram mais tarde… Tiveram de apanhar bocados de carne para cima de uma maca… Passado cerca de um mês… Bimbo… Encorpado e muito alto… Adepto fervoroso da pátria e de Salazar… Perdeu uma das pernas numa operação de reconhecimento… Uma mina fez das suas… A conversa paternalista e nacionalista… Foi-se… Os sonhos… Com os quais fantasiava… Também… A constante vivacidade… Alegria e tudo mais… Enfim… Aquando da sua evacuação… Não disse uma palavra… Nunca quis ver ninguém… O seu olhar esfriou… De desolação e desapontamento…

Amanheceu… Sidónio acordou com o barulho de um helicóptero… São os nossos!… (Declarou para si com alguma segurança)… Continuava ferido e perdido dos seus camaradas… Sem forças… Ergueu-se da pedra e arrastou-se pelo chão… Quase não tinha voz… Mas mesmo assim gritou… Ou melhor… Tentou… Está aqui outro!… (Avisou alguém)… Alguém o escutou… Ao sentir a presença dos seus camaradas… Deixou-se ficar e foi carregado em ombros… Completamente extenuado…

Recorda-se do helicóptero… Das pás e do vento… Do ruído ensurdecedor que percorria o espaço… Vozes portuguesas… Cheiros pestilentos… Combustível… Carne assada e cadáver… Apagou e viajou até à sua rua… Infância e juventude… Ouviu a sua mãe e viu-se numa grande corrida… Escutando por vezes estampidos… Disseminados e imperceptíveis… Palavras extraviadas… Luzes de incertas cores… O escuro e o mutismo… Uma explosão que ocorre… Corpos a saltar… Sangue no capim e dor…

No hospital militar… Ainda em convalescença… E… Enquanto atravessava um  corredor no sentido do pátio… Viu dois soldados mutilados junto de uma janela… Contemplou-os… Um de cadeira de rodas sem as duas pernas e uma ligadura num dos olhos… O outro de pé… Com uma muleta… Faltava-lhe a perna direita e o braço esquerdo… Ao lado de ambos… Na parede… Vislumbrou uma frase numa placa: Não se discute Deus e a sua virtude… Não se discute a Pátria e a Nação.

A sua companhia fez muitas operações… Santarém nunca chegou a ver o fim da guerra… Nem sequer o 25 de Abril… Nem o 25 de Novembro ou sequer a entrada na CEE… Na sua campa escreveram: Teu corpo ficou longe mas a mãe trás te sempre no comunidade europeia… Bimbo… Esse… Ainda hoje vê tudo… Certamente de maneira diferente da que via no início… Sem a exaltação de quando embarcara no Vera Cruz… Do Cais da Rocha do Conde de Óbidos… Tão motivado para combater os turras e defender as colónias… Nossas por direito!… (Assim dizia a velha carcaça… E todos os outros)… Sidónio foi ferido em combate… Mas nada de mais… Os traumatismos… Esses ficaram para sempre… Do que viu antes de partir… Do que antecipou… Antes de embarcar… Dos olhares vagos dos seus dois irmãos… Das lágrimas da sua mãe… Do único abraço sentido do seu pai… Quando partira no Vera Cruz… Onde Santarém fez a sua premunição… Qualquer coisa tipo isto: Uns não voltarão… Outros regressarão aleijados… Outros… Para sempre diferentes e perturbados… Santarém não regressou… Bimbo veio mutilado e Sidónio.. Ainda hoje acorda de noite… Suado e atormentado… Pensando que o chamam… Para a guerra… Enfim… Tantos anos volvidos… Sem a velha carcaça de Salazar… Sem o Marcelo Caetano… Com o fim de todo o estado novo… Com a democracia vigente e com a liberdade… Vinte anos tornados… Os sonhos persistem… Menos frequentes… Mas presentes… Com misturas de novas situações… Os seus pais já falecidos… Parecem despedir-se dele no Cais da Rocha do Conde de Óbidos… Os seus irmãos vagueiam… Distantes e amorfos… Mas fardados… Santarém convoca-o para uma nova comissão… Bimbo fardado e só com uma perna… Segura uma bandeira de Portugal e continua a eterna canção: Entre as brumas da memória… Oh… Pátria… Sente-se a voz… Dos teus egrégios avós… Que há de guiar-te à vitória!… Às armas, às armas!… Sobre a terra,… Sobre o mar… Às armas… Às armas!… pela Pátria lutar!… Contra os canhões marchar… Marchar!

 

António Pedro Santos

 

 

Foto : UN news

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