Um Turista Interno

Assumo-me turista interno em duas escalas. Primeiro, à escala nacional. Quem acompanha o que escrevo sabe que sou um peregrino insaciável pelas estradas de Portugal, num regalo vivo entregue aos meus sonhos e no combate à (des)virtude mirrada das gerações sem bandeira. Os traços visuais forasteiros têm brilho e fausto estético. Isso é indiscutível, mas não são nossos. Antes de ser do mundo, sou de Portugal, sou filho da terra e do sangue. Noutro plano, sou, muitas vezes, turista em Viseu, a cidade a quem Lisboa confiou a minha origem.
Tenho para mim que todos os rebentos da sua cidade são, por imposição quotidiana ou amor à casa, turistas internos. Quantos de nós, viseenses, já apreciou a imponência secular da Sé, a frescura movível do Rossio, os passos escondidos da Rua Direita ou o respirar esmeraldino do Parque sem ceder ao impulso de areia de um tédio repetitivo? O amor renova os olhares.
Há uns dias, na companhia da minha namorada, fiz o seguinte exercício: vesti, sem câmeras fotográficas ou bolsas de utilidades, o papel de turista em Viseu. Estabelecemos um percurso enquadrado com os passos de um visitante, a saber: Parque, Rossio e Terceiros – Rua Formosa – Rua Direita – Jardim Santo António – Santa Cristina – Praça D. Duarte – Sé e Misericórdia – Porta do Soar – Jardim das Mães.

A cidade maquilhava-se de asseio e ordem, variando do humor romântico ao brio medieval, o parque Aquilino Ribeiro conquistou-nos com a passagem do breu fresco do arvoredo para a plena exposição do sol, com um fio de água a casar com o verde, bancos ideais para demorados e a pequena mas antiga Capela de Nossa Senhora da Vitória que nos acompanhava nos passos mais íngremes. A belíssima igreja franciscana dos Terceiros voltada para o Rossio e alcançada na conquista das escadarias, contrastava pela forma ímpar da sua estética barroca, com uma fachada atrativa ao canto das suas formas e um interior onde o ouro e o azulejo se uniam.
O Rossio explodia em ebulição humana, com pessoas distribuídas em diversas idades. Umas na solidão dos seus pensamentos, outras na euforia partilhada, movimento que se coadunava como respeitável e charmoso edifício da Câmara Municipal a invulgar obra do Painel dos Azulejos, representado as gentes beirãs, agraciado pela cíclica paz da Fonte Luminosa.

A breve mas elegante Rua Formosa sugeria-nos duas hipóteses: Rua Direita ou Santa Cristina. Seguimos pela Rua Direita. Uma batalha de imagens agravava-se ao passo bélico. Uma rua tão portuguesa, quase Maria de caminho, com o peso agradável e inspirador dos séculos, entre o medieval e o restauro, com o bafio perfumado da história e a perene resistência das lojinhas tradicionais. Mas a rua sem pessoas é uma lágrima da razão. Para o turista, as pessoas são monumentos passageiros. Faltava a vida das ruas anteriores. Uma pena.

Chegados ao Jardim Santo António (perto do Teatro Viriato), percorremos a calçada visual até ao largo da Santa Cristina, com delicados floreios, fontes de verves medievos e respeitáveis edifícios religiosos. Temos para nós que a Igreja do Carmo, pérola de duas torres, merecia o pleno branco da sua origem, com algumas obras de restauro, enquanto que o jardim do largo da Santa Cristina suplica por mais flores, tons e bálsamos.

Regressámos à Rua Formosa com o centro histórico da Senhora da Beira no pensamento. A Praça D. Duarte elogia o nome augusto de um pertencente à Ínclita Geração. Cada pedra contém a euforia dos séculos respeitados enquanto a estátua do rei viseense observa as altas e esguias casas beirãs há muito construídas. Foi na soma de novos passos que a musa postal de Viseu se revelou. Falamos, naturalmente, da Sé de Viseu, um majestoso tributo Àquele que É, abraçada pela imponência das torres medievais, variada na boda dos estilos arquitectónicos e romântica na alvura antiga dos seus claustros. É uma declaração da história. A Igreja da Misericórdia, companhia da Sé, parece a fusão do vinho sacro com o vinho humano, de um rococó leal e apolíneo. A Porta do Soar, nobre lembrança da antiga muralha afonsina e o Jardim das Mães, retrato floreado da origem de todos os homens, foram um aceno de despedida da cidade.
Restava muito para ver, mas como turistas de improviso e de olhar sem tela em branco, orgulhar-nos-íamos de Viseu, onde o campo e a cidade enlaçam as mãos em namorados proibidos, a história ergue-se numa acupuntura patrimonial, os sabores comemoram a euforia e as ruas beijam com lábios ajardinados.

Francisco Paixão

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