Sinto-me perante folha branca que exige palavras. Parece que recuei até ao Éden da idade, quando urgia escrever a mais convincente das composições, no perfeito enquadramento de um primeiro amor à distância de três mesas, o eflúvio da cola antiga e o rosnar das afias. Ah, como sou feliz no meu bairro, Marzovelos. Todo o raiar primordial é convite para agradecer ao Criador as raízes vivas que sustentam a árvore briosa. Sou apenas mais uma nuvem do céu arquétipo do bairrismo, na gratidão às coisas que não falam mas que deixam falar. Nestas ruas medrei como um girassol exposto ao Sol cronológico, entre corridas fleumáticas e passeios agitados; prédios coerentes e escorreitos, desenho que fiz antes de nascer, omphalos do meu mundo; a quinta está mesmo ali ao lado, fundação pastoril com sangue de brasão, cidade e campo de mãos dadas, como se amizade entre Israel e a Babilónia, D. Miguel e D. Pedro; aqui o Natal, a Páscoa, o meu aniversário e todas as comemorações foram cantadas pela família; aqui esfolei os joelhos sobre a relva nas grandes disputas de bola entre amigos mascarados de rivais, aqui os bons dias são imensos enxames de velhas simpatias de calçada, aqui o comércio é variado como as penas de um pavão e persuade os exigentes; aqui festejei o golo do Éder confiante na imortalidade da voz, aqui agitei bandeiras do Benfica; aqui o Montelo é o palácio das novas brisas; aqui troquei o sangue nocturno pela tinta poética; aqui sonhei com uma mulher e acordei com um amor. No fundo, sou o respeito humano pela essência lusa: o amor incondicional pela origem e a eternidade frescura das memórias. Mudar-me? Não. Sou feliz no meu bairro até ao juízo do trono branco. Francisco Paixão