Primórdios da Ciência Moderna em Portugal

O atraso com que a ciência moderna –inaugurada por grandes nomes da Revolução Científica como Copérnico, Galileu, Descartes e Newton – chegou a Portugal, pode ser ilustrado pelo edital afixado à porta do Colégio das Artes em Coimbra em 1746, assinado pelo reitor dessa escola jesuíta: “nos exames, lições, conclusões públicas ou particulares se não ensine opiniões novas pouco recebidas ou inúteis para o estudo das ciências maiores como são as de Renato Descartes, Gassendi, Newton e outros, nomeadamente, qualquer ciência que defenda os átomos de Epicuro, ou negue a realidade dos acidentes eucarísticos, ou outras quaisquer conclusões opostas ao sistema de Aristóteles, o qual nestas escolas se deve seguir.”

Esta é apenas uma das peças de um conflito, que ficou famoso, entre os Antigos – os seguidores de Aristóteles, e os Modernos, os seguidores do método científico, baseado na observação, na experiência e na razão matemática, que marca a dita Revolução. A meio do século XVIII, quando os franceses Descartes e Gassendi, os dois contemporâneos de Galileu, e o inglês Newton, da geração seguinte, já tinham falecido há muito, as suas ideias permaneciam interditas entre nós. De nada valia a Gassendi ser padre católico, pois tinha ousado recuperar as ideias atomísticas dos gregos, que para a teologia oficial colidiam com a fé.

O domínio da Igreja não ajudou. O Index de Livros Proibidos, surgido entre nós em 1551, ainda antes do seu equivalente romano, baniu Copérnico, Galileu e Descartes (e só a 31 de Março de 1821, há 200 anos, a Inquisição, que zelava pela aplicação do Index, foi extinta!). A persistência da reacção ao sistema heliocêntrico de Copérnico, defendido sem sucesso por Galileu em 1633 na Inquisição de Roma, é também elucidativa do atraso nacional. Em 1753, numa obra de autor anónimo (provavelmente um padre beneditino) diz-se: “Se é o mesmo opôr-se à Fé que ser falso, como se não envergonham de dizer que no sistema de Copérnico se explicam melhor os fenómenos da natureza?”.

Para o triunfo dos Modernos foram obras decisivas a Lógica Racional, Verdadeira e Analítica (1754), de Manuel de Azevedo Fortes, e o Verdadeiro Método de Estudar (1756), de Luís António Verney (reeditado nas Obras Pioneiras da Cultura Portuguesa, Círculo de Leitores, 2018). Tanto uma como outra se inspiram em Descartes.

Foram os Oratorianos, a Ordem fundada em 1565 por Filipe Néri, que, em Portugal, mais impulsionou a Ciência moderna. No seu colégio – onde hoje é o Ministério dos Negócios Estrangeiros – já se davam em 1751 aulas de Física com demonstrações experimentais, às quais o rei D. José assistiu. Muito antes de 1772, data em que a Reforma Pombalina da Universidade de Coimbra instituiu o ensino experimental das ciências na então única universidade portuguesa. Foi também em 1751 que saíram os primeiros dois volumes da Recreação Filosófica, do oratoriano Teodoro de Almeida. Este primeiro tratado de Física em português (reeditado nas referidas Obras Pioneiras, 2017) já segue uma orientação marcadamente moderna.

A Academia de Ciências de Lisboa só surgiu em 1779, mais de um século após a sua congénere britânica, a Sociedade Real de Londres, à qual Teodoro de Almeida pertenceu. Foi este autor que, após um exílio de uma década em Espanha e França devido ao fecho pelo marquês de Pombal do colégio oratoriano, fez a primeira oração de sapiência na nova academia, na qual equiparou Portugal a Marrocos, originando protestos dos apaniguados do marquês.

É injusto, como fez a máquina de propaganda pombalina, acusar os jesuítas de extremo atraso. Alguns deles deram grandes exemplos de modernidade. Foram os jesuítas italianos Paolo Lembo e Christophoro Borri que trouxeram para Portugal o telescópio de Galileu menos de quatro anos depois de ele ter sido usado pela primeira vez em Itália, em 1609. E foi daqui que ele foi para o Oriente. A Aula da Esfera, que funcionou no colégio jesuíta de Santo Antão, onde hoje é o Hospital de S. José, foi uma fértil escola internacional de Matemática desde a sua fundação em 1590, até ao seu inglório encerramento pelo marquês em 1759. O jesuíta Manuel Dias, em 1615, foi o primeiro a referir na China as descobertas de Galileu, no seu livro em mandarim Sumário de Questões Celestiais. A Revolução Científica entrou na China por mão portuguesa!

Mas impõe-se uma nota ainda mais importante: a Revolução Científica não teria sido possível sem os Descobrimentos portugueses, que valorizaram a experiência como a “madre das coisas”. De facto, as bases do método científico encontram-se já na obra de sábios portugueses quinhentistas como os médicos Amato Lusitano e Garcia de Orta, o matemático Pedro Nunes, e o geofísico D. João de Castro. Eles foram, por isso, pioneiros da ciência moderna. Atraso? Não, nestes casos houve adiantamento…

 

Carlos Fiolhais

Professor de Física da Universidade de Coimbra

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