O jurista Ernesto Pais de Almeida nasceu em Viseu e quis retribuir à cidade a sua formação, por isso, entregou hoje 35 obras da sua coleção de arte ao Museu Nacional Grão Vasco, onde aprendeu a gostar de pintura.
“Não é uma doação, porque doação pressupõe doar algo sem receber nada em troca e eu estou a retribuir à cidade tudo o que ela me deu e tudo o que fez por mim na minha formação e no homem que hoje sou”, justificou hoje Ernesto Pais de Almeida, à agência Lusa, na sessão que assinalou a apresentação da sua coleção, no Museu Nacional Grão Vasco.
Atualmente com 84 anos, o advogado saiu de Viseu aos 19 e não voltou a morar na cidade que o viu nascer e crescer, apesar de “nunca esquecer tudo” o que ali viveu e aprendeu, e onde tem as suas “maiores referências” no desenvolvimento humano.
Na atual Escola Secundária Alves Martins, antigo Liceu Nacional, onde estudou, teve três professores – um deles de desenho – que foram “a maior referência nos valores adquiridos” na sua vida, e que partilhou com os seus oito filhos.
“Nos poucos meses que nos deu aulas, foi ele [esse professor de desenho] que me ensinou a ler um quadro, ao dizer que, para isso, era preciso olhá-lo com tempo para que ele nos transmitisse o que tinha para dizer, quer pelas suas cores, que mais não são que um leque de emoções, quer pelo desenho. Os quadros falam connosco”, contou.
Depois disto, recordou, o pai levou-o ao Museu Grão Vasco onde conheceu “o [guia] senhor Figueiras que tinha a figura do rei Dom Carlos e que, religiosamente, aos domingos, no fim da missa, ao longo de três anos, foi um verdadeiro professor” de arte.
“Foi aqui no Museu Grão Vasco que aprendi a gostar de arte e de pintura. E quando percebi que os meus oito filhos não tinham a mesma ligação emocional aos quadros, este ‘fio invisível’, que eu lhe chamo, percebi que teria de os entregar ao espaço onde aprendi a gostar e a ler os quadros”, explicou o colecionador à agência Lusa.
“Fio invisível” acabou por ser o nome dado a este espólio que Ernesto Pais de Almeida doou e que o acompanhou ao longo de “mais de 40 anos de vida”, composto por este conjunto de obras que, no seu entender, “era impensável que se separassem”. “Nunca suportaria essa ideia de elas se separarem”, afirmou, nem que fosse pelos oito filhos: “O mais provável era acabarem a ser vendidas [as obras da coleção], porque não lhes diziam nada, eles não têm qualquer ligação emocional” aos quadros.
“Assim posso vir falar com elas sempre que quiser, posso continuar a comunicar e a ter esta ligação emocional com as pinturas. Nunca suportei a ideia de as ver separadas. Acompanharam-me ao longo da vida, e continuarei a falar com elas até quando eu puder”, justificou.
Assim, hoje, o Museu Nacional Grão Vasco (MNGV) recebeu a doação de 35 obras, 33 pinturas, uma escultura e uma peça de ourivesaria em prata dourada que saíram diretamente da sua casa em Sintra, para o espaço museológico em Viseu.
Trata-se de um conjunto de obras nacionais e estrangeiras, sobretudo dos séculos XVII e XVIII.
Informação do museu indica que a coleção tem como “núcleos mais expressivos” a pintura de paisagem e temática religiosa, embora possua igualmente exemplares de pintura mitológica, natureza-morta e retrato.
Destacam-se peças provenientes do atelier de Peter Paul Rubens e de pintores como Tobias Verhaecht, Paul Landon e Jacob Fransz van der Merck.
As duas pinturas portuguesas do acervo estão provisoriamente atribuídas a André Reinoso e Diogo de Contreiras.
“Uma coleção bastante heterogénea que revela um gosto pessoal e que se divide em dois tipos de pintura, a de paisagens e a religiosa, que vem aumentar desta forma as coleções do MNGV e engrandecer o seu espólio”, destacou a diretora, Odete Paiva.
A responsável recordou todo o processo, desde o primeiro telefonema, em fevereiro, em que pensou que “era alguém a brincar a querer doar uma peça de arte”. Entretanto, com a continuação dos contactos, a doação “passou a seis peças e acabou, no dia em que saíram da sua casa, em 35”.
A secretária de Estado Adjunta e do Património Cultural, Ângela Ferreira, enalteceu o gesto e sublinhou que o ato “vai muito para lá da doação, porque é uma história feita de memórias”, que agora fica disponível para ser visitável.
“Um dos nossos propósitos é que as grandes coleções de arte, sejam públicas ou privadas, sejam visíveis e visitáveis, e este acervo tão relevante vai agora enriquecer a nossa coleção aqui presente no Museu Nacional Grão Vasco”, destacou Ângela Ferreira.