Atraso ferroviário e isolamento económico

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  • Autarcas, empresários e especialistas técnicos solicitam audiência à Comissão de Economia, Inovação e Obras Públicas da AR e ao Governo
  • Atuais políticas da UE e do Governo estão tecnicamente mal fundamentadas e conduziriam Portugal ao isolamento económico.
  • Um grupo de autarcas, empresários e especialistas técnicos remeteram hoje, em carta enviada à Comissão de Economia, Inovação, Obras Públicas e Habitação, um pedido de audiência para debater a solução encontrada pelo Governo para a requalificação da rede ferroviária nacional, a qual compromete irremediavelmente a competitividade futura da economia portuguesa.

    Face aos constrangimentos ambientais e energéticos que a Humanidade enfrenta, a União Europeia promove políticas para garantir a sustentabilidade do sistema de transportes na Europa, nomeadamente através da transferência de tráfego dos modos ambiental e energeticamente menos eficientes e menos sustentáveis, para os mais sustentáveis e eficientes. Este objetivo está quantificado pela UE: até 2030 transferir 30% e até 2050 transferir 50% do tráfego de mercadorias nas médias e longas distâncias (>300km) da rodovia para os modos ferroviário e marítimo. Atualmente, cerca de 70% do comércio externo de Portugal faz-se com os seus parceiros da UE. Destes, cerca de 80% em valor faz-se por rodovia. Ou seja, Portugal depende muito fortemente da rodovia para as suas ligações comerciais à UE o que, a médio-prazo, será insustentável face aos constrangimentos energéticos e ambientais e às políticas europeias de transporte.

    Com os objetivos de estímulo ao crescimento, à criação de emprego e de mitigação das alterações climáticas – e uma dotação orçamental de 24 mil milhões de euros – a Rede Transeuropeia de Transportes prevê a conclusão da sua Rede Principal até 2030, em bitola europeia, estruturada em 9 corredores multimodais principais. Nestes incluem-se os corredores Lisboa-Porto, Lisboa/Sines-Badajoz e Aveiro-Salamanca.

    A solução encontrada pelo executivo, com o aval e o financiamento da Comissão Europeia, prevê a instalação de travessas polivalentes nas linhas já existentes em bitola ibérica e a posterior requalificação das linhas para bitola europeia o que, de acordo com o Plano Nacional de Infraestruturas não acontecerá antes de 2030, apesar das regras dos fundos europeus, dos quais Portugal já beneficia, assim o exigirem. Os signatários consideram ainda profundamente preocupante o desconhecimento da Comissão Europeia quanto às exigências técnicas de uma posterior migração para linhas de bitola europeia. Em resposta às inquietações manifestadas em carta enviada à Sra. Comissária Europeia para os Transportes, Adina Valean, a Comissão compara as perturbações no tráfego causadas por esta transição às comuns perturbações causadas por “trabalhos em vias férreas, incluindo as intervenções de manutenção, em toda a UE” (correspondência com a Comissão Europeia no link abaixo). Ora, cumpre esclarecer que o fluxo contínuo dos comboios só será possível após a alteração da posição dos carris em toda a linha, o que significa que a linha ficará fora de serviço não durante algumas horas, mas provavelmente meses, porque o tráfego terá de ser interrompido do início ao fim dos trabalhos nessa linha. Dependendo das alternativas, em alguns casos, as consequências económicas e ambientais dessas longas interrupções da operação ferroviária podem ser insuportáveis para a economia. A comparação da Comissão do impacto dos trabalhos de mudança de bitola com outras obras ferroviárias é infundada, levando a políticas geradoras de situações que no futuro serão muito difíceis e caras de resolver.

    É certo que a atual solução preconizada por Portugal, e aprovada pela Comissão Europeia, permitirá a continuidade da circulação ferroviária entre Portugal e Espanha (que iniciou há 32 anos o processo de migração para a bitola europeia) mas continuará a obrigar ao transbordo de passageiros e mercadorias para transporte além-Pirinéus, deixando inalterada a situação de isolamento nacional apesar do atual investimento e dos fundos disponíveis para o efeito.

    As diferenças de bitola são o mais forte obstáculo técnico à circulação de comboios. Os transbordos, o principal meio de resolver este problema, além de fazerem perder tempo e dinheiro, tornam a gestão do sistema ferroviário ineficaz devido à necessidade de compatibilização de canais horários de comboios diferentes em redes com bitolas diferentes, para minimizar essas perdas de tempo. Por isso, o tráfego ferroviário internacional de mercadorias entre Portugal e a Europa além Pirinéus é de zero toneladas anuais. Além disso, em grandes quantidades, necessárias à transferência modal em larga escala como é objetivo das políticas europeias, a ineficácia de gestão inviabiliza o funcionamento do sistema com um mínimo de competitividade.

    Muitas empresas e Associações empresariais portuguesas têm consciência do problema. Algumas como a AFIA (Associação de Fabricantes para a Indústria Automóvel), antevendo esse isolamento têm recomendado às empresas suas associadas que se preparem para usar as plataformas logísticas espanholas de Vigo, Salamanca e Badajoz, que se irão ligar à rede ferroviária de bitola europeia, para exportar para o centro da Europa, num processo de minimização de danos mas com inevitáveis custos de contexto acrescidos em relação a outras empresas europeias suas concorrentes.

    A manutenção da situação excecional da atual rede portuguesa tem na verdade um “racional” que está em contradição direta com os propósitos da política da União nesta e noutras matérias. Em entrevista à estação de rádio TSF em 20 de Outubro de 2018, o então Ministro das Infraestruturas e agora deputado europeu Pedro Marques, afirmava, no contexto do livre acesso às redes de transporte ferroviário de passageiros na União Europeia, decidido em 2013, que parte da concorrência será afastada à partida por haver uma “proteção natural”: a bitola ibérica. Acresce, que para além da profunda contradição desta posição anticoncorrencial, que visa estabelecer uma restrição de efeitos equivalentes a uma proibição da concorrência no mercado português, decorrem da política resultante desta posição consequências graves para os exportadores portugueses (e europeus no seu conjunto, quando exportadores para Portugal) que, para que os operadores ferroviários locais sejam protegidos no seu mercado natural, se veem prejudicados na capacidade de fazer circular as mercadorias sem entraves no espaço económico europeu.

    É muito claro que a manutenção da bitola ibérica, de acordo com as próprias declarações do Governo Português, visa proteger a CP da concorrência, criando uma barreira artificial de proteção do incumbente em detrimento de potenciais concorrentes, com o enorme prejuízo que esta forma de ajuda à CP causa à economia.

    Acresce que a rede ferroviária já hoje impõe a Portugal uma péssima classificação, 29.º lugar, nos relatórios sobre competitividade da economia do Fórum Económico Mundial. Este atraso tornar-se-á irremediável para as nossas empresas exportadoras se ficarmos de fora das redes Trans-Europeias de Transportes, para passageiros e mercadorias, a que a Espanha, os seus portos e plataformas logísticas se estão a conectar.

    Os signatários apelam assim à existência de um debate esclarecido e bem fundamentado tecnicamente, cientes de que esta é a última oportunidade que que Portugal dispõe para vencer o atraso ferroviário, com as irremediáveis consequências para a competitividade futura da economia nacional.

    Os signatários:

    Alberto Grossinho, Engº mecânico. Desempenhou funções na REFER
    António Almeida Henriques, Presidente da Câmara Municipal de Viseu
    António Gomes Correia, Professor Catedrático da Universidade do Minho
    António Miguel Batista Poças da Rosa, Presidente da NERLEI (Associação Empresarial da Região de Leiria)
    Arménio Matias, Engº electrotécnico, fundador e Ex Presidente da Associação para o Desenvolvimento do Transporte Ferroviário (ADFER), Ex Administrador da CP
    Carlos Sousa Oliveira, Professor Catedrático Jubilado do Instituto Superior Técnico
    Eugénio Menezes de Sequeira, Engº agrónomo, Investigador Coordenador aposentado do Instituto Nacional de Investigação Agrária, Ex Presidente da Liga para a Proteção da Natureza, Membro da Comissão de Ambiente da Sociedade de Geografia de Lisboa
    Fernando Castro, Presidente da AIDA, (Associação Industrial do Distrito de Aveiro)
    Fernando Mendes, Engº electrotécnico, empresário
    Fernando Santos e Silva, Engº electrotécnico, Ex responsável no Metropolitano de Lisboa pelos processos de homologação dos novos troços
    Henrique Neto, empresário
    João Duque, Professor Catedrático do Instituto Superior de Economia e Gestão
    João Luis Mota Campos, Ex Secretário de Estado da Justiça (2002-2004)
    Joaquim Polido, Ex Presidente da Fernave, Ex Presidente da Associação para o Desenvolvimento de Sistemas Integrados de Transportes (ADFERSIT), Ex quadro superior da CP
    José António Ferreira de Barros, empresário, Ex-Presidente da AEP (Associação Empresarial de Portugal)
    José Augusto Felício, Professor Catedrático do Instituto Superior de Economia e Gestão
    José Couto, Presidente da AFIA (Associação dos Fabricantes para a Indústria Automóvel) e do CEC (Conselho Empresarial do Centro)
    José Ribau Esteves, Presidente da Câmara Municipal de Aveiro
    Luis Cabral da Silva, Engº electrotécnico, gestor, ex-quadro superior da REFER especialista em Transportes e Vias de Comunicação
    Luis Miguel Ribeiro, Presidente da AEP (Associação Empresarial de Portugal)
    Luis Mira Amaral, ex-Ministro da Indústria (1985-1995)
    Mário Lopes, Engº civil, Prof. do Instituto Superior Técnico (IST), Ex Presidente da ADFERSIT
    Mário Ribeiro, Engº mecânico, Ex-quadro superior da TAP no serviço de manutenção
    Ricardo Rio, Presidente da Câmara Municipal de Braga
    Rogério Hilário, Vice-Presidente do CEC (Conselho Empresarial do Centro)
    Rui Carrilho Gomes, Professor do Instituto Superior Técnico (IST)
    Tomás Moreira, Ex-Presidente da AFIA (Associação dos Fabricantes para a Indústria Automóvel)
    Vitor Caldeirinha, Ex-Presidente da Administração dos Portos de Setúbal e Sesimbra, Ex-Presidente da Associação de Portos de Portugal e Ex-Presidente da ADFERSIT