Quem for ao Centro de Interpretação do Estado Novo, em Santa Comba Dão, à espera de uma perspetiva apologista do regime liderado por Salazar vai sentir-se, “mais do que desiludido, incomodado”, salientou um dos coordenadores científicos do projeto.
“Quem for ao Centro de Interpretação do Estado Novo numa perspetiva de apologia do Estado Novo, diria eu que vai sentir-se, mais do que desiludido, incomodado, porque, normalmente, pessoas que têm essa visão não gostam de um discurso historiográfico sobre o Estado Novo”, afirmou à agência Lusa João Paulo Avelãs Nunes, um dos coordenadores científicos do projeto, que será construído no Vimieiro, concelho de Santa Comba Dão, terra natural de António Oliveira Salazar.
Em resposta às críticas contra aquele projeto que alertam para o perigo de ‘romarias’ de defensores de Salazar ao local, o também vice-coordenador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX (CEIS20) da Universidade de Coimbra vincou que as pessoas que têm uma visão positiva do Estado Novo gostam de um discurso laudatório em torno do regime, o que “nunca será o caso”.
“Não será laudatório, nem condenatório. Como é óbvio, quando se caracteriza uma ditadura, para quem gosta de ditaduras, a caracterização [que será feita no Centro] será antipática”, vincou.
Após uma notícia sobre o arranque de obras na Escola Cantina Salazar, para aí instalar o Centro de Interpretação do Estado Novo, surgiram várias opiniões e petições contra a iniciativa, uma delas com mais de 15 mil assinaturas, endereçada ao primeiro-ministro, António Costa, que chamava erradamente ao espaço ‘Museu de Salazar’.
Posteriormente, a Câmara de Santa Comba Dão veio esclarecer que nunca teve intenção de criar um museu dedicado a Salazar, referindo que o Centro de Interpretação do Estado Novo estará integrado na Rede de Centros de Interpretação de História e Memória Política da Primeira República e do Estado Novo, em cinco concelhos da região Centro, com consultoria científica do CEIS20.
João Paulo Avelãs Nunes vinca que na sessão de apresentação da rede, em julho, foi dito “expressamente” que, ao contrário de outros espaços, como a Casa-Museu Aristides de Sousa Mendes, o do Vimieiro “nunca seria uma casa-museu”.
Segundo o historiador com vários trabalhos publicados em torno do Estado Novo, o Centro de Interpretação vai abordar todo o período entre 1926 (quando se instaura a ditadura militar) e 1974, caracterizando o regime, comparando-o com outras “soluções políticas ditatoriais na Europa e no mundo” naquele período, sejam elas ditaduras de tipo fascista ou de tipo comunista.
“Falaremos da época dos fascismos, do período da Guerra Fria, da Segunda Guerra Mundial, da Guerra Colonial, da Crise de 1969, da repressão, da resistência, das grandes estruturas e organizações da sociedade portuguesa e da sua relação com o regime, falaremos dos ditadores – Salazar e Marcelo Caetano -, falaremos das outras elites do Estado Novo, dos conflitos entre elites, das correntes modernizadoras, conservadoras e tradicionalistas. Falaremos disso tudo”, esclareceu.
Para João Paulo Avelãs Nunes, o projeto vai “ocupar o espaço simbólico com um discurso interpretativo e de fomento da democracia na localidade onde nasceu o principal ditador do Estado Novo”.
Sobre o perigo de o local se transformar em local de ‘romaria’, o historiador vincou que o saudosismo quanto ao Estado Novo em Santa Comba Dão “não é fenómeno de massas”, resumindo-se a umas dezenas de pessoas por ano que ali vão em homenagem a Salazar.
Para além disso, João Paulo Avelãs Nunes apontou para o exemplo de Predappio, em Itália, terra natal do ditador fascista Benito Mussolini, onde há “manifestações gigantescas, duas vezes por ano”, em homenagem ao fascismo italiano, numa terra onde “ainda hoje o Partido Democrático tem maioria nas eleições”.
“Para combater essa conquista desse espaço pela extrema direita, o presidente da Câmara encomendou à Universidade de Bolonha, ao seu Departamento de História, um Centro de Interpretação sobre o Fascismo Italiano. Não o fez para criar manifestações ou para vender Predappio turisticamente”, vincou, salientando que é isso que o CEIS20 está a fazer em Santa Comba Dão, com a vantagem de se estar num país em que a extrema direita “tem menos de 1% [dos votos] e as pessoas que vão ao Vimieiro são algumas unidades por ano e não centenas de milhares”, como no caso de Itália.
O fundador do CEIS20 e conselheiro na rede de centros interpretativos, Luís Reis Torgal, recorda que a ideia de um espaço de interpretação do Estado Novo em Santa Comba Dão surgiu nos anos 1990, sendo que a sua posição não se alterou desde então: “Jamais se deve fazer um Museu de Salazar, mas deve-se fazer aquilo que se chama agora de Centro de Interpretação do Estado Novo”.
Nessa década, chegou a ser contactado pela autarquia, mas abandonou a colaboração com o projeto do presidente da Câmara Municipal da altura, quando a iniciativa “descambou para uma ideia salazarística”.
Sobre as opiniões e petições que circulam sobre o projeto atual (que não está relacionado com o dos anos 1990), Luís Reis Torgal nota uma falta de sentido crítico.
“As pessoas não têm tempo para ver o que está por trás daquilo [das petições]. As pessoas não vão ver os documentos. Quem é que leu a nota que vinha no ‘site’ do município de Santa Comba Dão?”, questiona, referindo que a maioria das pessoas que assinou as petições – contra e a favor de um dito Museu de Salazar – assinou “sem espírito crítico”.
Para além do Centro de Interpretação do Estado Novo, em Santa Comba Dão, a rede integra ainda o Centro de Interpretação da Primeira República/Casa-Museu António José de Almeida (Vale de Vinha, Penacova), Centro de Interpretação do Antissemitismo e do Holocausto/Casa-Museu Aristides de Sousa Mendes (Cabanas de Viriato, Carregal do Sal), Centro de Interpretação da Estância Sanatorial do Caramulo (Guardão, Tondela) e o Centro de Interpretação da Primeira República/Afonso Costa (Seia).
Todos os centros terão consultoria científica e tecnológica do CEIS20, num projeto que junta cinco câmaras municipais e a ADICES (Associação de Desenvolvimento Local).
Para a iniciativa, será criado um conselho consultivo, para o qual serão convidadas entidades como o Museu da Presidência, o Instituto de História Contemporânea, outras unidades orgânicas do ensino superior e associações cívicas, por forma a garantir que os objetivos iniciais de cada um dos projetos não serão adulterados.
O projeto, neste momento, está em fase de discussão das linhas orientadoras de produção de conteúdos, que serão aprovadas pelas entidades que encomendaram o projeto ao CEIS20 e, posteriormente, pelo conselho consultivo, que será criado em breve, explicou Avelãs Nunes.
António Ventura-Lusa